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Cronicas-->CAíNO IÇÁ -- 11/04/2000 - 01:09 (Mario Galvão) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos

(*)
O sol de fim de primavera desaparecera, escondido por nuvens grossas que tinham vindo espantar o calor com suas carrancas escuras.
A chuva batera nas vidraças, no início forte, de gotas enormes, depois intermitente e fininha. O cheiro de terra molhada entrou pelos buracos das venezianas e durante várias noites ouviu-se o repicar das gotas nos telhados de zinco dos galinheiros dos quintais.
Choveu. Choveu uma semana inteirinha, sem parar, deixando a velha Sebastiana fula, com tanta roupa molhada no varal, sem que ela pudesse entregar.
A criançada, presa dentro de casa, era um inferno, sem poder jogar bola de gude, empinar papagaio, ou pelo menos sair flanando por aí, espiando a Serra da Mantiqueira, ao longe.
-- Saia daí, Zéca!
-- Não mexa na panela, Tatá!!
-- Para de bater na menina, Joãozinho!!!
Então o Sol decidiu voltar. Veio assim, meio que envergonhado por ter ficado tanto tempo ausente. Mas, logo sentiu-se à vontade e espantando o restinho de nuvens que teimava ficar flanando no azul, começou a levantar mormaço forte da terra úmida e da grama ainda molhada.
Foi então que as içás saíram para a festa da vida!
Alçaram vóo aos miríades, acompanhados naquele vóo insano por milhares e milhares de içá-bitus, os machos. Se alguém olhasse para o Sol, se conseguisse olhar, ou protegesse os olhos com um caco de vidro escuro, poderia pensar que o astro havia adquirido uma espécie estranha de sarampo, tanto eram os pontinhos a sarapintá-lo.
E dançaram...e dançaram...e dançaram...
O delírio chegou ao fim e eles tiveram que voltar à Terra, agora perseguidos por sabiás, sanhaços e tizius, todos famintos, alvoroçados pela comida farta e pela molecada ávida, de panela na mão, correndo pelas ruas de chão batido, ainda enlameadas e cheias de poças d´água.
Até a dona Emerenciana, mulata gorda, amásia do Seu Jerónimo, dono do armazém da Rua Visconde, desceu correndo para a parte baixa do loteamento novo, para pegar o seu quinhão.
Levantava a saia, desajeitada, agitando no ar um galho de goiabeira, tentando atingir as içás que esvoaçavam agora por toda parte.
Era uma correria dos diabos, cada um querendo encher sua vasilha:
-- Pega aquele Tatá!! Olha que grandão! Não deixa escapar!
-- Deixa esse prá mim...eu vi primeiro!
A correria acontecia principalmente no campo de futebol do Rua Visconde Futebol Clube, também conhecido como Estádio do Pacaembrejo, onde épicos rachas eram travados aos domingos.
No centro das duas traves, de um dos lados do campo de futebol, justamente onde o rapadão indicava a posição do goleiro, um grupinho se reúne em volta de uma arena improvisada.
Aquele grupo, de garotões mais taludos, não está nem um pouquinho interessado no aspecto gastronómico da caçada às içás. O que querem é fazer as formigonas travarem combates aguerridos e mortais, colocando apostas nas mais ferozes.
Duas enormes içás se enfrentam, uma vermelhona e outra preta, mandíbulas escancaradas.
A luta mortal tem início e uma sucessão de ferroadas terríveis de pernas e antenas arrancadas acontece enquanto as duas torcidas apostam notas e moedas numa ou outra combatente.
Finalmente, a vermelhona, num hábil golpe de esquiva, seguido de uma ferroada espetacular, trinca a cabeçona negra da adversária, que rola na arena improvisada, pescoço fino partido pelo meio. Cabeça para um lado e o corpo da preta fica lá, espadanejando tocos de pernas para o ar. Está terminada a luta.
Gritos de alegria e raiva. Os partidários da vitoriosa recebem as apostas. O Chico Bóia, filho da Francisca do Seu Néco Carpinteiro, cata vencedora e vencida, sem o menor respeito e joga as duas dentro da lata. Às heroinas, a panela de óleo fervente.
Outras içás lutadoras aparecem em cena.
-- Olha o ferrão desta aqui! Não tem páreo para ela!!
A tarde já vai avançada quando o cheiro típico, acre, enjoativo, das fritadas de içá começa a se espalhar por todo o bairro, provocando o lamber de beiços de alguns e o nariz torcido de outros que acham que "içá frito tem cheiro de papel higiênico com mijo sendo queimado."
-- E pensar que essa gentinha come essa porcaria! Quem torce o nariz é Dona Engrácia, portuguesa que tem banca no mercado e que jamais se acostumou a essa característica dos guaratinguetaenses, de comerem formiga rainha, considerando-as acepipe ímpar.
-- Ora pois, pois. Onde já se viu comeire formigas como se ainda fosse u tempu dus profetas de Jesuis Crissto Nosso Sinhoire!!!
E tapava o nariz para não sentir o cheiro penetrante, como se fosse iodofórmio, a inundar e empestear toda a atmosfera da Vila Alves e da Rua Visconde, da Ponte do Ribeirão dos Motta até a saída para Aparecida do Norte.
Só não se comia aquelas que tinham sorte de cair no Cemitério dos Passos. Dessas dizia-se que tinham predileção por defunto, cruiz credo, vê Maria.
E lá no meio do campo de futebol, uns poucos- buraquinhos redondos, torrõezinhos de terra na entrada, demonstravam que algumas, pelo menos algumas içás haviam escapado da sanha da meninada e dos passarinhos, garantindo a revoada do ano que seguinte.
Içá é uma iguaria para um dia só no ano.
Que pena, se lamentava Dona Engrácia, a mulata, refestelada na poltrona da sala, prato vazio em uma das mãos, trincando nos dentes alvos a última,fritinha, das muitas que conseguira pegar com o galho de goiabeira. O marido, carioca, olhando de longe, que não era dado a essas guloseimas esquisitas da gente do interior.

(*) Publicado originalmente no jornal O VALEPARAIBANO, em 08/03/1981.

Mário Galvão é jornalista e profissional de RP



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